sexta-feira, setembro 07, 2007

O Meu Tio

Título Original:
"Mon Oncle" (1958)

Realização:
Jacques Tati

Argumento:
Jean L'Hôte & Jacques Lagrange

Actores:
Jacques Tati - Monsieur Hulot
Jean-Pierre Zola - Monsieur Arpel
Adrienne Servantie - Madame Arpel
Lucien Frégis - Monsieur Pichard


O cinema peculiar do cineasta francês Jacques Tati oferece insistentemente ao espectador uma perspectiva sorridente da Vida nos seus pequenos e rotineiros pormenores. É um cinema muito visual em que as imagens por si mesmas têm um papel preponderante. Mas o som dos filmes de Tati é depurado no sentido de ajudar a recriar de forma divertida os diferentes ambientes, conferindo-lhes uma dimensão irónica e pitoresca. É como se ao Cinema Mudo, quase sem diálogos, fosse adicionado um elemento radicalmente expressivo, pontualmente ritmado e realista e que evolui em sincronismo perfeito com as imagens. Em síntese final, o que vemos no cinema de Tati são retratos perfeitos da vida humana com tudo o que têm de comum mas de burlesco também.

O personagem habitualmente incarnado por Jacques Tati nos seus filmes é o Sr. Hulot – homem um pouco excêntrico, distraído, que se parece movimentar de modo alheio à sociedade retratada. Hulot observa os outros, é pensativo e quase não fala. (Talvez tenha sido uma das fontes de inspiração para o Mr. Bean de Rowan Atkinson.) É distante, frequentemente inconsciente dos desastres que desencadeia. Às vezes, vítima inocente das situações.

A fórmula cinematográfica de “O Meu Tio” já havia sido desenvolvida no seu “Há Festa na Aldeia” e em “As Férias do Sr. Hulot”. Consiste na reconstrução de cenários humanos através de uma história com contornos muito ténues. Na maioria dos filmes que são realizados, procede-se à narração de uma história procurando torná-la mais realista e consistente no contexto dos ambientes recriados. A fórmula de Tati é inversa. Num filme de Tati (em qualquer deles), procede-se à reconstituição de ambientes naturais e humanos usando como instrumento de apoio a narração de uma história.

Em “O Meu Tio”, vemos cenas típicas do mercado de rua, as brincadeiras das crianças, o passeio dos cães vadios em trajectos livres mas rotineiros. Os automóveis em circulação (num tráfego que tem tanto de ordenado como de exasperante) como mais tarde em “Sim, Sr. Hulot”. Observamos o quotidiano numa fábrica e os seus ritmos internos de trabalho como depois em “Play Time”. E espreitamos o estilo de vida de uma família burguesa com os seus pormenores caricatos, o seu apreço pela ostentação e pelo que é esteticamente belo mas não necessariamente prático.

Em “O Meu Tio” estão as grandes temáticas eleitas por Tati: a excentricidade proveniente do uso das novas tecnologias e a concepção anedótica de uma sociedade moderna mas bizarra. A casa do cunhado do Sr. Hulot é uma casa moderna porque está repleta de engenhos sofisticados mas frequentemente as máquinas não funcionam de modo brilhante. É o protótipo do ambiente ideal de quem preza o que é visualmente inovador e mete cobiça aos vizinhos. Mas nem por isso é cómodo ou acolhedor. As mobílias da casa são estranhas. (Hulot prefere uma cadeira normal para se sentar.) As pedras no espaço ajardinado não seguem uma linha recta obrigando quem passa por elas a movimentar-se segundo uma dança caricata.

Hulot não pertence àquele meio. As novas tecnologias parecem assustá-lo. Na cozinha, tudo é susceptível de o surpreender. O sofá não lhe permite deitar-se ao comprido porque tem uma forma curva. No jardim, um peixe artificial lança água da boca por meio de repuxos hesitantes e barulhentos. O fenómeno visa impressionar as visitas mas em Hulot causa sobretudo espanto.

Naquela casa, tudo remete para hábitos e etiquetas que valorizam o que é socialmente louvável e vistoso. Por exemplo, almoça-se numa pequena mesa arrastada para o pátio e vai-se beber o café numa outra mesa a dois metros da primeira. Hulot é um observador. Mas numa dada cena é ele que se sente desconfortável. A irmã e o cunhado observam-no, cada um da sua janela redonda do primeiro andar. As janelas redondas parecem olhos a mirá-lo inquisitivamente sendo que o homem e a mulher se posicionam de modo visualmente expressivo.

Numa família vaidosa e elitista, o cão da casa veste um fato próprio e vai brincar com os cães vadios mas regressa a casa trespassando o portão enquanto os outros ficam à porta, mirando o universo que lhes está interdito. Tati caricaturiza uma sociedade de contrastes. Mas na qual o espectador se acaba por identificar nalgum ponto específico. Nas ruas, onde os vendedores de fruta e de legumes fazem negócio nem sempre idolatrando os valores da limpeza e da higiene. Nas proximidades da taberna, onde homens se juntam para beber e tagarelar ruidosamente. Na fábrica e nos escritórios, onde ninguém trabalha até se fazer sentir a proximidade do chefe.

Os actores têm um desempenho essencialmente corporal. Movimentam-se de modo expressivo. Quase como num filme mudo. Ou num espectáculo de mimos. (Tati trabalhou ele próprio como mimo.)

No resultado final, estamos perante um filme que exibe contrastes e perspectivas de vida. E, neste domínio, Hulot agrada bem mais ao seu jovem sobrinho do que o próprio pai dele. É despreocupado, brincalhão, desatento, alheio a princípios severos e a convenções rígidas.

“O Meu Tio” soma um brilhante conjunto de quadros da vida humana. Como o do varredor que vemos recorrentemente durante o filme e que está sempre a conversar com a vassoura nas mãos e um pequeno monte de lixo aninhado diante de si. Ou como o da menina que é vizinha de Hulot. E que vemos sempre como uma criança até ao termo da história quando ela surge diante de nós (e de Hulot) como uma jovem e atraente senhora.

A obra de Jacques Tati representa uma perspectiva particular do mundo. E um conceito único de cinema. O filme “O Meu Tio” foi galardoado com o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e recebeu uma aclamação generalizada. Dizem que Tati foi um grande humorista e que os seus filmes são comédias de referência histórica. Não sei se estabeleceria a minha opinião nesses termos. Durante uma projecção de “O Meu Tio” não deverei soltar mais de meia dúzia de gargalhadas. Mas tenho a sensação de que sorrio desde a sua abertura à sua conclusão.

Os filmes de Tati representam para o espectador um tipo de experiência cinematográfica singular. Experiência distinta e peculiar mas que desenvolve histórias estranhamente vazias e inócuas. Receio que a atenção do público se possa dispersar em determinadas sequências. Talvez em “O Meu Tio” se pudessem ter retirado cerca de trinta minutos menos relevantes. E tornado mais variada a banda sonora que usa repetidas vezes o mesmo trecho melódico tocado num típico acordeão francês. Mas a Vida também está repleta de momentos menos intensos e de rotinas que não apresentam nada de proeminente. E o cinema de Tati é essencialmente isso: uma soma de retratos da Vida.

Na cena final, a perspectiva da rua passa a ser mediada pela cortina de uma janela – o que nos coloca no olhar de um morador local ou de um simples observador do mundo. Vemos os cães a correrem na rua vistos a partir de dentro de uma casa. E quase podemos pensar que alguém os observa. E que a câmara vai mostrar o observador. Mas, na realidade, o observador é cada um de nós. É o espectador do filme.

Se os filmes são pedaços de vida, os espectadores são observadores dessa vida que lhes passa diante dos olhos. Ver Cinema é um acto de contemplação. E ver o cinema de Tati é visualizar comportamentos humanos e ideais de vida. E fazê-lo sempre com um sorriso nos lábios.

® José Varregoso