Antes que Anoiteça
|
Antes de protagonizar o muito elogiado Mar Adentro, de Alejandro Amenábar, Javier Bardem assinalou uma das suas interpretações mais emblemáticas em Antes que Anoiteça (Before Night Falls), biopic do escritor cubano Reinaldo Arenas segundo a visão de Julian Schnabel (realizador-pintor que assinou também Basquiat, outra biografia sobre um artista controverso).
Contrariamente a múltiplos retratos edificantes que glorificam, de forma excessiva, a vida do biografado, Schnabel evita esses aparatos melodramáticos e aposta em tons mais realistas, não caracterizando Reinaldo Arenas como um mártir ou uma figura larger-than-life. Paralelamente, o cineasta contorna a previsibilidade e esquematismo de diversas biografias que não fazem mais do que ordenar cronologicamente acontecimentos-chave da vida do biografado, apostando antes numa narrativa não linear que permite uma maior aproximação ao âmago do protagonista.
Antes que Anoiteça proporciona um interessante olhar sobre o percurso de Arenas, figura perseguida e ameaçada pelo regime de Fidel Castro entre as décadas 50-70, situação que o forçou a emigrar para os Estados Unidos, onde acabou por morrer vítima de Sida.
Julian Schnabel consegue apresentar eficazmente os tormentos que assolavam o protagonista, cuja vida foi marcada por torturas e punições recorrentes enquanto se encontrava dentro das fronteiras do sistema cubano.
Os motivos desta perseguição eram, por um lado, a escrita subversiva e revolucionária de Arenas, denunciadora das debilidades do regime de Fidel Castro, e também a sua orientação sexual (o escritor era homossexual, factor que o tornava num elemento ainda mais entrópico e desestabilizador).
Schnabel oferece um absorvente estudo de personagem, mergulhando nas convulsões e inquietações do protagonista e na sua vida inconstante e de rumo imprevisível.
Javier Bardem encarna Arenas de forma brilhante e invulgarmente credível, numa interpretação que esmaga todas as outras (mesmo num elenco que inclui fugazes participações de Johnny Depp e Sean Penn).
Bardem gera momentos de fascinante tensão dramática, congregando as doses de pathos e a vertente marginal que a personagem requer.
De resto, o cuidado com a apresentação física da personagem é notável, expondo as múltiplas experiências conturbadas que a marcaram.
As distinções da National Society of Film Critics, dos Independent Spirit Awards e da National Board of Review, que classificaram a prestação do actor como a melhor de 2000, foram mais do que justas e merecidas.
O one-man show de Bardem faz, contudo, com que as restantes presenças do elenco assumam pouca relevância e não suscitem grande curiosidade, tornando o protagonista na única personagem tridimensional e bem trabalhada.
Tendo em conta que se trata de uma biografia, este aspecto é compreensível, até porque o actor é sempre entusiasmante, mas ainda assim lamenta-se que não se encontrem aqui mais figuras memoráveis.
A narrativa do filme sofre também de alguma debilidade, nem sempre exibindo solidez e coesão, o que faz com que Antes que Anoiteça proporcione duas horas de vibração e intensidade irregulares.
Schnabel compensa o desequilíbrio narrativo com um sóbrio trabalho de realização, que por vezes origina inspirados planos e imagens de assinalável beleza. O rigor estético é complementado pela apelativa fotografia e, sobretudo, pela muito apropriada banda-sonora original de Carter Burwell (e ocasionais contribuições de Lou Reed e Laurie Anderson).
Cru e realista sem deixar de ser emotivo, Antes que Anoiteça supera algumas das suas fragilidades devido ao óbvio empenho do realizador e do actor, que oferecem uma experiência cinematográfica honesta, sentida e credível.
Um bom drama e uma interessante perspectiva sobre a arte e a vida.
® Gonçalo Sá
2 Comments:
Já tive oportunidade de conhecer Schnabel como pintor mas não como realizador. Foste capaz de me fazer interessar ainda mais pela sua faceta que ainda não descobri.
Qualquer dia...
Cumprimentos e parabéns pela crítica
Não vi este, mas se a interpretação de Javier Bardem for metade da que foi em "Mar Adentro" já é meio caminho andado para fazer um bom filme :).
Cumps. cinéfilos
Enviar um comentário
<< Home