quinta-feira, março 16, 2006

Abril Despedaçado

Título Original:
"Abril Despedaçado" (2001)

Realização:
Walter Salles

Argumento:
Walter Salles, Sérgio Machado & Karim Aïnouz, baseado em livro de Ismail Kadará

Actores:
José Dumont - Pai
Rodrigo Santoro - Tonho
Rita Assemany - Mãe
Luiz Carlos Vasconcelos - Salustiano


Walter Salles realizou, da forma o mais poética possível, um filme sobre violência e crimes impunes sem qualquer justificação. Onde as rodas de bois do interior brasileiro se confundem com a roda da vida sempre em movimento…até findar o ciclo.

Breve e Ferreira. Duas famílias que lutam pela posse de terras no nordeste brasileiro, e que ainda seguem a tradição da dívida de sangue para justificar as mortes que vão reduzindo cada um dos clãs, em processo incessante.
A história começa com uma morte entre os Breve: a do irmão mais velho de Tonho (Rodrigo Santoro), que, chegada a altura, tem de vingar a mesma, e que, em consequência disso, ocupa o lugar do próximo marcado para morrer. Quando o sangue da camisa pendurada no quintal ficar amarelo, ele saberá que é chegada a hora…todos sabem que será a hora, todos estão preparados e aceitam que será assim, como se não houvesse outra alternativa ao destino inexorável destas duas famílias rivais.

Mas Tonho quer mais da vida, e junta os seus sonhos de adolescente crescido aos do seu irmão mais novo, Menino (Ravi Ramos Lacerda): ambos são crianças conscientes do que os espera, mas sonhadores o suficiente para quererem mudar no mundo em seu redor o que não lhes agrada. E esse sonho tornar-se-à mais sustentável quando dois viajantes que aparecem no sertão, Clara e Salustiano (respectivamente, Flávia Marco António e Luís Carlos Vasconcelos) os levam à cidade para ver o circo onde trabalham. Fascinados pela magia, encantados com a liberdade, Tonho e Menino começam aos poucos a ver no circo e nas rodas de fogo uma fuga para as suas vidas condenadas, e em particular Tonho acaba por pôr em causa tudo o que até aí lhe foi transmitido como herança familiar.

Walter Salles, responsável pelo premiado Central do Brasil(1998) e, mais recentemente, por Diários de Che Guevara (2004), traz-nos com este Abril Despedaçado um belo mas realista retrato do modo de vida de algumas famílias do interior brasileiro, onde a lei e a justiça são feitas arbitrariamente e as terras são móbil de vida e de morte.

O realizador, que já nos habituou ao género documentário ou road movie, consegue nesta película de 2001 unir a poesia de uma tragédia grega à crueza da realidade, apoiando-se no romance do albanês Ismail Kadará para, de forma também ela muitas vezes literária, narrar a convivência entre a total ignorância e pobreza e a fantasia e riqueza de espírito. Na verdade, o filme é percorrido por belos momentos verbais e fotográficos (a direcção de fotografia é de Walter Carvalho, tal como em Central do Brasil), que lhe dão, apesar da violência e de algumas perseguições à western, um carácter quase etéreo e inesquecível, já que a sensibilidade de Salles está mais uma vez à flor da pele e transparece especialmente nos personagens de Tonho, Menino e Clara. O mais velho, porque conhece um mundo sem limites e o amor que lhe dá a sede de libertação, pela mão de Clara; o mais novo, porque através do livro que aquela lhe oferece aprende a ler a vida mesmo sendo analfabeto, e torna-se ele próprio o narrador da história.
Estes são os três personagens-chave, actores dirigidos com mestria numa obra cinematográfica que fica memorizada pela poesia que, inexplicavelmente, transmite.

® Andreia Monteiro