quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Vera Drake

Título Original:
"Vera Drake" (2004)

Realização:
Mike Leigh

Argumento:
Mike Leigh

Actores:
Imelda Staunton - Vera
Richard Graham - George
Eddie Marsan - Reg
Anna Keaveney - Nellie


Mike Leigh tem vindo a distinguir-se como um dos mestres do cinema realista britânico, e alguns títulos da sua filmografia – os emblemáticos ou Segredos e Mentiras, por exemplo - atestam a sua capacidade para proporcionar credíveis e minuciosas atmosferas habitadas por um quase sempre notável e muito profissional elenco. Contudo, o cineasta acusava, no seu filme anterior, Tudo ou Nada, sinais de algum esgotamento de ideias ao enveredar por uma pouco surpreendente auto-citação, repetindo os mesmos tipos de temas e personagens.

Vera Drake, a sua obra mais recente, mantém os tons realistas e os traços de drama familiar mas inova ao debruçar-se agora sobre uma temática específica, polémica e actual: o aborto. A película é já uma das mais elogiadas e premiadas de Leigh – conquistando as distinções de melhor filme e melhor actriz no Festival de Veneza e seis prémios da British Independent Film Awards, entre outros galardões e nomeações – e, por isso, suscitava expectativa q.b. e fazia prever uma perspectiva peculiar sobre um tema incontornável.

No entanto, e embora possua óbvios méritos, Vera Drake é um daqueles casos onde o burburinho que antecipou a sua estreia entre nós funcionou contra si, uma vez que o filme não apresenta assim tantas qualidades que o tornem num objecto tão único e marcante.

No cerne da acção encontra-se uma mulher de meia-idade, mãe, esposa e empregada de limpeza dedicada, proveniente de humildes meios londrinos do pós-Segunda Guerra Mundial. O que torna Vera diferente de tantas outras mulheres é o facto de praticar, desde há vários anos, abortos clandestinos a múltiplas jovens, elaborados em condições precárias e limitadas. Vera esconde este facto da própria família, embora seja já uma figura conhecida entre um restrito círculo de mulheres que a encaram como uma presença confiável, segura e com provas dadas dentro desates conturbados processos.

A realização destes actos, encarados como criminosos e moralmente condenáveis segundo a legislação da época, não é motivada por qualquer interesse económico – são feitos a título gratuito -, e derivam apenas das consideráveis doses de generosidade e altruísmo que Vera emana naturalmente (auxiliando assim, segundo ela, as atormentadas jovens na resolução dos seus problemas). Todavia, a situação torna-se mais tensa para a protagonista quando as autoridades tomam conhecimento dos seus actos, o que inicia um tumultuoso e abrupto processo de crise familiar e de desolação contínua.

Se por um lado Leigh nunca exagera na tentativa de veicular uma posição específica quanto à questão do aborto, evitando que Vera Drake se transforme em mais um panfleto filmado, o desenrolar da acção contém, ainda assim, alguns elementos de irregularidade que tornam o resultado final pouco convincente. As motivações nobres e dignas de Vera Drake são logo um dos pontos questionáveis do filme, não que a personagem seja inverosímil, mas porque dificilmente será representativa do conjunto de indivíduos que praticam semelhantes actos (legalmente condenáveis na sociedade da época).

É certo que Imelda Staunton é exímia na sua composição (justamente nomeada para o Óscar de Melhor Actriz Secundária), e a sua Vera Drake comove e enaltece, mas Leigh abusa do tom e transforma-a quase numa mártir, factor que se destaca, sobretudo, na segunda parte do filme, um cansativo concentrado de interminável sofreguidão e desencanto. Os ambientes crus e realistas são excelentes, assim como todo o núcleo de actores – dos principais aos secundários, todos demonstram entrega e empenho -, mas isso já não é novidade num trabalho de Mike Leigh, e é pena que estes sejam os únicos elementos realmente satisfatórios em Vera Drake. O ritmo da narrativa é, infelizmente, demasiado arrastado e pouco envolvente, não dispensando alguns episódios francamente redundantes e aborrecidos, e o argumento previsível e convencional também não contribui para que o filme consiga inquietar ou despertar especial interesse.

Em vez ser um absorvente e complexo drama sobre as ambiguidades e contradições humanas, que era o que se esperaria de um cineasta subtil e perspicaz como Mike Leigh, Vera Drake reduz-se aos domínios algo lineares e formatados de um esforçado, mas pouco consistente telefilme da BBC, com tanto de competente como de indistinto. Ainda assim, quem procurar ver uma actriz em pleno estado de graça não ficará completamente defraudado...

® Gonçalo Sá