A Câmara de Madeira
Título Original: "The Wooden Camera" (2003) Realização: Ntshavheni Wa Luruli Argumento: Yves Buclet & Peter Speyer Actores: Junior Singo - Madiba Innocent Msimango - Sipho Dana de Agrella - Estelle Jean-Pierre Cassel - Mr. Shawn |
Realizado por Ntshavheni Wa Luruli, um realizador sul-africano que já trabalhou como assistente de realização de Spike Lee em Malcon X, A Febre da Selva e Não dês Bronca, A Câmara de Madeira é o segundo filme de Ntshavheni, depois da longa-metragem Chikin Biznis de 1999.
Apesar da sua origem despertar a ideia de que se trata de mais um filme-documentário sobre a vida selvagem, a verdade é que A Câmara de Madeira está a anos-luz do tradicional estereótipo de filme africano. Num lado totalmente oposto a essa realidade, a película é uma muito agradável surpresa cinematográfica que apresenta um olhar peculiar e quase poético sobre as opções de escolha que o destino raramente oferece aos jovens africanos, e do uso e desuso que eles fazem com as decisões tomadas, com a sua vida e com o seu futuro nesse cenário caótico que é o continente africano - mais concretamente a Cidade do Cabo e o bairro Kayelitsha, local onde ocorre a maior parte da acção desta película sul-africana.
A Câmara de Madeira conta o percurso dos jovens Madiva e Sipho a partir do dia em que, ao brincarem junto a uma linha-férrea, vêem um corpo a ser jogado do comboio em andamento. Curiosos, os jovens aproximam-se e vasculham os bens do morto em busca de algo que possam adquirir, e encontram então uma arma e uma câmara de vídeo, ambas em óptimas condições e prontas a ganharem um novo dono. Cada um deles decide então ficar com um dos objectos. Sipho escolhe a arma. Madiva escolhe a câmara.
Para proteger a câmara de vídeo de possíveis olhares interesseiros e invejosos, Madiva esconde o objecto dentro de uma câmara de madeira que serve de protecção ao seu novo brinquedo favorito. O objecto acaba por despertar o instinto cineasta em Madiva, e o jovem começa a fazer uso da novidade para filmar pessoas e objectos de uma maneira simplesmente inocente e bela como só uma criança sabe fazer amadoramente.
Sipho, por seu lado, fica fascinado pela invulnerabilidade e poder que a arma lhe dá, e faz uso desta para obter dinheiro, respeito e admiração por parte de quem o rodeia, acabando assim por ingressar por uma vida criminosa - um percurso diferente do do amigo, mas mais comum naquela realidade.
Um dia ao passearem pelas ruas de a Cidade do Cabo, ambos acabam por conhecer a jovem Estelle, uma rapariga rica e branca que é apaixonada por música e revoltada contra as regras raciais dos seus pais. Com o passar do tempo uma forte relação de amizade nasce entre os três jovens, e Estelle passa cada vez mais tempo com os dois, fascinada pela simplicidade de Madiva e pelo carisma de Sipho. Porém, com os caminhos oposto que os dois amigos parecem tomar, Estelle ve-se obrigada a fazer uma escolha não só entre Madiva e Sipho, mas também em relação às hostilidades dos seus pais para com aquela amizade e a sua vida ...
Vencedor do Urso de Cristal do Festival de Berlim 2004 na categoria Teen, A Câmara de Madeira é uma história bela que exibe a dura realidade das tensões raciais existentes numa África do Sul que ainda digere a mudança de política racial causada pelo fim do Apartheid. Tudo isto demonstrando através dos olhos da juventude do filme, que representa o futuro daquela nação. Isso é bem visível na construção das três personagens principais que são jovens ambiciosos, criativos, inteligentes e tolerantes, ao contrário dos adultos que são pessoas racistas, rancorosos, intolerantes e de mente fechada. Um choque de mentalidades que tem a sua raiz no antes e depois que a África do Sul viveu e continua a viver.
O filme é em muitos aspectos parecido ao Cidade de Deus, do brasileiro Fernando Meirelles, pois ambos apresentam um olhar realista sobre duas culturas do terceiro-mundo onde reina uma miscelanea de cores e diferenças sociais, que acabam por contaminar e corromper a juventude desses locais, dificultando assim um futuro melhor para esses jovens. Isto é bem visível em ambos os filmes, e em A Câmara de Madeira é apresentado através de um olhar específico, mas mais soft, de uma juventude negra que cresce diante de raras oportunidades que contradizem com o caos político, social e económico lhes rodeia, retratando a realidade existente na África do Sul de uma maneira muito singular e desfilando subtilmente pelos temas polémicos que predominam na sociedade daquele país como é o caso do racismo, preconceito, pobreza e criminalidade, tal como acontece em parte no Brasil de Cidade de Deus.
Deixando o resto da análise para ser feita por quem já o viu ou tenciona ver, da minha parte só posso dizer que A Câmara de Madeira é um tributo demasiado bom à magia dos cineastas amadores, à esperança e à amizade, e que não merece ficar estacionado eternamente nas prateleiras do clube de vídeo sem que ninguém a alugue, pois esta é uma obra que merece um visionamento obrigatório tanto pela mensagem que transmite como pela magnífica qualidade ímpar e incomum que ela possui.
A Câmara de Madeira é uma pérola do cinema africano e um dos mais belos (mas desconhecidos) filmes feitos ultimamente não só naquele continente, mas muito provavelmente a nível mundial. Uma obra incrível que impressiona pela sua beleza pura e singela, e que está repleta de talentos e qualidades em todos os aspectos (perfeitas actuações dos protagonistas, excelente imagem, magnífico som, delicosos diálogos, etc, etc, etc..), e que infelizmente só não recebe uma pontuação superior a oito estrelas porque a perfeição não existe em lado nenhum (nem mesmo no cinema), embora A Câmara de Madeira seja um filme muito perto desse patamar. Muito perto mesmo.
® Fábio Guerreiro
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