domingo, abril 01, 2007

Dueto só para um

Título Original:
"Duet for One" (1986)

Realização:
Andrei Konchalovsky

Argumento:
Tom Kempinsky & Andrei Konchalovsky

Actores:
Julie Andrews – Stephanie Anderson
Alan Bates – David Cornwallis
Max von Sydow – Dr. Louis Feldman
Rupert Everett – Constantine Kassanis


Andrei Konchalovsky é um refinado mestre na arte de recriar cenários trágicos e melancólicos. Um grande realizador de dramas. À distância de mais de vinte anos do seu Dueto Só Para Um, só me consigo recordar de um cineasta que é tão fenomenal a trabalhar cinematograficamente as misérias humanas: Lars von Trier. Alguém escreveu um dia que os filmes de von Trier são tão cruéis de ver como é cruel receber um soco no estômago. Em 1986, Konchalovsky (que concebera Os Amantes de Maria (1984), Sibiriada (1979) e Comboio em Fuga (1985) havia provado já que era um talentoso contador de histórias trágicas. Dueto Só Para Um nasceu como um retrato amargo que descreve as limitações humanas e a inevitabilidade da Morte.

Há quem opine que Konchalovsky, aqui a trabalhar sobre a vida de uma artista impedida de executar a sua arte, se tenha deixado sensibilizar pelo sofrimento de Andrei Tarkovsky que morreu de cancro durante a realização do filme. É bem possível. Na realidade, este é um filme sobre a doença, o sofrimento e o abandono. Mas, mais do que isso, é o terrível drama de uma violinista incapacitada de tocar a sua música, a música para a qual aprendera a viver. Uma mulher condenada à paralisia gradual e implacável da esclerose múltipla.

O papel desta violinista terá sido inspirado pela história verídica da violoncelista Jacqueline du Pré que também serviu de base ao filme Hillary and Jackie de 1998. Em Dueto Só Para Um, o argumento de Tom Kempinski é baseado na sua própria peça de teatro e assume uma postura mais contemplativa do que movimentada. Porque este é um filme sobre emoções e não tanto sobre acontecimentos. E as próprias palavras proferidas nos momentos oportunos conferem sentido à intensidade do drama.

Se Stephanie Anderson (interpretada por uma excepcional Julie Andrews) é a «maior violinista viva», de acordo com as palavras do seu grande aluno (Rupert Everett), a perda das suas capacidades interpretativas também representa um drama para o universo da Arte. Antes da morte de Stephanie, encontram-se a agonia e o fim da sua arte. O drama de Stephanie Anderson é o drama mediante a impotência humana. Repare-se como Konchalovsky acentua o confronto entre o Homem e a Natureza. A Natureza é melancolicamente observada pelo olhar humano. E o Homem parece perdido e impotente em contraste com a força e a resistência do mundo natural. Vejam-se os cartazes publicitários do filme que mostram a silhueta pequena e distante de Stephanie refugiada debaixo da grande árvore.

Neste aspecto, aquela árvore, que ela e o seu marido (Alan Bates) haviam revisitado ao longo dos anos, simboliza qualquer coisa que estará viva muito para além das suas vidas. Stephanie encosta a cabeça ao seu tronco e declara: «Quase se escuta a vida dentro dela.« Dueto Só Para Um é um filme sobre uma mulher que tanto respira Música como oxigénio. E que constrói toda a sua identidade em torno dessa arte. Mas é uma arte com um fim previsto. Stephanie vive para tocar. O que fará se os dedos com que toca não responderem aos seus incentivos mentais? Como pode o seu corpo viver sem expressar aquilo que o anima?

Este filme intenso parece mostrar os seres humanos emparedados dentro de uma vida que não dominam. Quase sempre os personagens são mostrados entre quatro paredes. Como que num domínio claustrofóbico. Por isso, o genérico do filme parece opôr-se à estrutura do argumento. Nele, cenas movimentadas e ruidosas das ruas de Londres são intercaladas com pausas suaves em que a tela fica negra e se escuta um violino distante.

A cena visualmente mais espectacular, envolvendo um cenário maior, retrata um sonho. Um sonho inicialmente idílico e feliz e que se transforma gradualmente num pesadelo de contornos terríficos. A cadeira de rodas surge como um símbolo de aprisionamento e de agonia. Um dos grandes trunfos do filme é o desempenho dos seus actores. Aqui Julie Andrews assume solidamente um papel diferente daqueles que a celebrizaram. Porque Stephanie não é amorosa nem perfeita. É uma mulher fragilizada por circunstâncias trágicas, revoltada e amarga; por vezes, antipática e inconveniente. E contudo o seu drama ultrapassa a tela e gera empatia.

De resto, os personagens em geral não são figuras estereotipadas, criadas artificialmente para agradar ao espectador. São seres humanos com fraquezas e limitações. E a dar-lhes vida estão sólidos actores: Max von Sydow é o psiquiatra que não consegue encontrar sentido para o sofrimento da sua doente, embora procure a todo custo conduzi-la para um percurso edificante e racionalmente satisfatório. Liam Neeson é o amante com quem Stephanie se envolve e que só lhe poderá oferecer prazer físico mas nunca amor.

De tudo o que aqui fica expresso, ressai um balanço francamente positivo do trabalho de Konchalovsky. Este filme é uma obra singular, incrivelmente menosprezada e injustamente esquecida. Os circuitos de distribuição do filme foram ineficazes no processo de divulgação da obra. Aliás a sua produtora, a Cannon, acabaria por falir pouco tempo depois. Num ano em que Marlee Matlin ganhou o Óscar de Melhor Actriz por Filhos De Um Deus Menor (!), Julie Andrews nem sequer foi nomeada. Como Andrews terá declarado mais tarde, o filme parecia estar de algum modo condenado desde o dia da sua estreia.

Certo que o seu final não é conclusivo nem vibrante. Os últimos minutos da narrativa deixam assentar uma certa monotonia. A derradeira imagem não traduz o espírito do trailer. O espectador espera alguma coisa mas Konchalovsky parece não querer transmitir mais nada. A imagem do poster nunca é verdadeiramente vista no filme. Talvez se pedisse um final mais expressivo, fosse ele mais idílico ou mais brutal. Konchalovsky optou por uma conclusão morna.

O filme é triste e pessimista. Mas é intensamente humano. Talvez um dia, o Tempo venha trazer à obra a consagração que nunca conheceu. Por agora, Dueto Só Para Um ainda não foi editado em DVD, nem nos Estados Unidos nem na Europa. Os seus escassos mas sinceros fãs esperam por uma edição digna que respeite o formato original da imagem. Em Portugal, quem possuir uma cassete VHS da Imavídeo, com legendas amarelas repletas de gralhas, já se poderá considerar momentaneamente feliz. Até quando?

® José Varregoso

4 Comments:

At 12:28 da manhã, Blogger Pedro Pereira 77 said...

Nunca vi o filme, mas gostei muito da tua critica, deu-me vontade de ir ver o filme, mesmo não parecendo ser dos meus estilos favoritos... Parabéns pelos excelentes comentários.

 
At 3:09 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Assisti ao filme há muito tempo, pela TV Globo, naquelas sessões de madrugada. Eu me lembro de uma cena em que a violinista tenta, sem êxito, tocar. Julie Andrews passa toda a angústia da impossibilidade. Ironia do destino ou trapaça da sorte: tenho Esclerose Múltipla e gostaria muito de rever o filme.

 
At 2:56 da tarde, Blogger Amanda Aouad said...

Vi esse filme na televisão há muito tempo e tenho procurado muito por ele... Uma pena mesmo que não tenha esse resgate. Julie Andrews está magnífica no papel;

 
At 5:06 da tarde, Anonymous waldemar lopes said...

Grande análise crítica de um filme fabuloso de Konchalovsky. Aqui no Brasil chamou-se Sede de Amar, na busca de um maior público. Julie Andrews está magnífica, na melhor interpretação do ano. Foi indicada a 2 Globos de Ouro, um por esse drama e outro por That's Life!. Os 2 filmes dividiram os votos do Oscar. Uma pena. Como você belamente escreveu, que o tempo repare essa injustiça... Bravo, Julie Andrews!

 

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